terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Veríssimo pai, Veríssimo filho...


Quinta-feira passada, noite, chovia e fazia frio num Rio de Janeiro carente de verão. O Instituto Moreira Sales recebia convidados para uma palestra/entrevista sobre "Incidente em Antares" com ninguém menos que Luís Fernando Veríssimo, o admirável filho do admirabilíssimo autor.
Cheguei cedo pra garantir o lugar. Não queria perder a chance de ver alguém tão brilhante falando sobre um livro que me agradou tanto numa fase decisiva da minha vida. Era curiosa a sensação de reencontro com o eu mais jovem que lera o livro sob outras circunstâncias, agora esquecido de detalhes preciosos talvez nem percebidos na época da leitura. Um encontro do eu mais maduro com o escritor filho do escritor (típico filho de peixe) cujo trabalho acompanho em livros e nas crônicas do Globo.
Gestos contidos, fala mansa, justificando a fama de tímido, lá estava Veríssimo filho, já vovô, discorrendo não só sobre aquela última obra de seu pai, mas principalmente sobre como ele o enxergava, como o via trabalhar, como o acompanhava e admirava. E o fazia como se estivesse batendo papo com amigos, papo de varanda regado a chimarrão, tratando o grande Érico simplesmente como "o pai". Soava como um menino maduro, fazendo-me refletir sobre a eternidade da infância e a relatividade do tempo.
"O Tempo e o Vento", visto daquele ângulo, parecia não mais a viga mestra da produção literária de Érico, mas uma tese filosófica do mestre sobre a volatilidade de nossos conceitos, exatamente quando o pretexto de estarmos reunidos era a celebração dos 40 anos do seu consagrado "Incidente". Sempre o tempo.
Saí do IMS feliz por ter testemunhado aquele momento, feliz pela singeleza da experiência verissimal, pelo reencontro com minha versão de décadas atrás, pela descoberta dos recantos de Antares que o eu mais jovem desperdiçou, e pelo apetite renovado de ler e reler os que sobrevivem à crueldade dos calendários.

sábado, 28 de janeiro de 2012

A música segundo o gênio


Fui ver (e ouvir) ontem um filme que me encheu de orgulho. Que monumento nacional esse Antonio Carlos Brasileiro Pra Cacete Jobim! A música segundo ele é o máximo, dispensando texto, efeitos, atores e comentários... ocupando tudo com o brilhantismo das construções harmônicas e melódicas, com a riqueza dos intérpretes, com os olhares faiscantes na tela e marejados na plateia.
Devia ser obrigatório como votar, devia estar nos currículos escolares, dever cívico total, acompanhar essa história, aplaudir quem colocou o Brasil e o Rio na trilha sonora do mundo, quem elevou Ipanema ao pódio do imaginário global, quem mitificou a mulher carioca tornando-a inconfundível por detalhes tão simples quanto o "jeitinho dela andar". Que coisa mais linda!
A cumplicidade espoleta com Elis, o nivelamento estrelar com Sinatra, a fossa profunda de Maísa, a "Insensatez" de Judy Garland, a doçura de Nara, o sarro de Sami Davis Junior, divas e divos pra todos os gostos, vozes raras como a de Agostinho dos Santos e Milton Nascimento, as parcerias de Vinicius a Chico Buarque... Tá tudo ali, um desfile de genialidades que culmina na Sapucaí com justíssima homenagem, e maltrata o coração com um debochado "Chega de Saudade", depois de nos lembrar que a alma canta ao ver um Rio de Janeiro que nos enche exatamente de saudades. Sacanagem.
Criativo demais, ousado demais. Só o Tom se atreveria a fazer um samba com uma nota só, e a compor um "Desafinado", como quem desfruta de intimidades especiais com a música. Só ele poderia inspirar Nelson Pereira dos Santos a realizar com Dora Jobim um longa-metragem 100% musical, imaculado, inesquecível.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Livros comestíveis. Por que não?



"Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus".
A Bíblia está cheia de referências ao poder da palavra e de alusões ao ato de ingerir como sendo a forma absoluta de introjeção. No Apocalipse (10,9) chega-se ao ponto de um apóstolo receber a ordem de comer um livro.
Quem me chamou a atenção para esse dado apocalíptico foi Unamuno em seu livro "Como Escrever um Romance". Com seu estilo filosófico-transcedental, ele afirma que, sendo o livro uma coisa viva, deve-se comê-lo.
A metáfora faz sentido quando imaginamos o quanto a leitura exige de tempo de mastigação e digestão pra funcionar de verdade. E se completa com a sensação de fortalecimento que experimentamos ao final de cada livro bem absorvido, e quando sentimos cada vez mais sabor no ato de ler, e quando a fome de leitura passa a se manifestar naturalmente, como na hora do almoço.
Sem dúvida, livro alimenta.
Podemos dizer que a internet nos fornece fast-junk-food, ou tira-gostos, ou belisquetes pra enganar o estômago. Tudo vapt-vupt, sem tempo de apreciar direito, nem poder nutriente pra nos manter saudáveis. Mas, de vez em quando, saem do forno cibernético uns pãezinhos bem gostosos, que abrem o apetite pra refeições com maior sustância.
Metáforas à parte, já existe papel comestível. Vi um anúncio feito com ele, só não cheguei a provar. O fato é que aperfeiçoa daqui, melhora dali, mete um molho, aumenta a escala, e vai que alguém resolve produzir um livro... sei não, viajei.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Matou o professor de lógica e foi ao teatro

Conversando com o ator Augusto Madeira durante as filmagens de campanha publicitária recentíssima, nem veiculada ainda, comentei sobre sua atuação (excelente, por sinal) na peça "O Púcaro Búlgaro". Sem saber, acertei na mosca. O entusiasmo com que ele reproduziu algumas das longas falas, os detalhes de interpretação com que se deliciou de novo, tudo contagiava e denunciava sua identidade com o estilo do autor do livro que deu origem à peça.
Passagem de tempo. Abro a Folha de São Paulo no domingo e leio um artigo que brinca com o tema do livro e consequentemente da peça: a dúvida sobre a existência da Bulgária. Novamente vejo com que prazer é sublinhado o talento do responsável por aquele brilhante trabalho de literatura do absurdo, Campos de Carvalho. O Púcaro Búlgaro foi seu último livro e, por mais que o tempo passe, é difícil imaginar que ele algum dia deixe de ser moderno, como modernos continuam sendo a espera de Godot, os rinocerontes que nos atropelam pela vida afora, e tantos outros exemplos a comprovar que o absurdo reina cada vez com mais intensidade.
Tanto o artigo da Folha quanto o ator na conversa que tivemos, fizeram menção a uma frase que parece definir muito bem o espírito de Campos de Carvalho: "Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando legítima defesa". Palmas pra ele.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

As Canções de Eduardo Coutinho, e nossas.


Palco vazio. Apenas uma cadeira em cena. Personagens se revezam ali, contando e cantando suas histórias. Desfilam amores perdidos, lembranças imperdíveis, frustrações, culpas, emoções... São tantas, como diria o rei.
Roberto Carlos aparece sem estar em cena. Suas músicas se destacam na trilha sonora da vida dessa gente.
Do outro lado da câmera, Eduardo Coutinho rege os depoimentos com a mesma maestria demonstrada em "Jogo de Cena", uma espécie de terapeuta que arranca melodias da alma.
Como sofrem especialmente as mulheres! Como é importante a música para registrar e resgatar a essência de nossos sentimentos! Como é bom ter um cineasta de cabeleira branca e olhar profundo a nos desvendar as delicadezas e brutalidades que povoam os corações que cruzam com a gente pelas ruas! As Canções, beleza de filme. Num cinema ou numa esquina perto de você.