quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Música por todos os cantos

Outro dia, pouco antes do Natal, estava eu na Missa e um grupo de violinistas se apresentou executando a trilha sonora típica dessa época. Abriram sua performance com a famosa "quero ver você não chorar, não olhar pra trás, nem se arrepender do que faz...", sem se dar conta de que estavam tocando um antigo tema publicitário do finado Banco Nacional. Seguiu-se o set tradicional de White Christmas, Noite Feliz etc, mas as primeiras notas a pisar no altar foram as de um jingle (que não era bells).
Mais recentemente, assistindo ao especial de fim de ano da Globo com Ivete Sangalo, Gilberto Gil e Caetano Veloso, percebi na telinha uma transcendência litúrgica. Não eram músicas temáticas, nada disso, tudo bem mundano. Mas a energia que pintou naquele espetáculo passou todo o clima dessa época de abraços e bemquerências. Que repertório! Que talentos! Que integração de genialidades! Que arranjos do Lincoln Olivetti (estava sumido ele, muito bom vê-lo ressurgir em tão grande estilo)! Não era igreja, mas tocou no espírito. Não era jingle, mas deixou sua marca.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Baseado em fatos natalinos reais


UM GARFO DE NATAL.


Restos de peru, tender, bacalhau, três saladas pra amenizar a culpa calórica, arroz, farofa… pratos sujos sobre a toalha vermelha, ornada de estampas natalinas e salpicada de guardanapos de papel igualmente temáticos.

Na sala, as músicas de sempre, as recordações de outros natais com menos ausências a lamentar e mais infâncias a festejar. O imaginário goleando a realidade, desnudando um Papai Noel que não desgruda da alma, mas esfrega na cara sua inexistência. Natal com poucas crianças, muitas lembranças, palavras calculadas, preservando um equilíbrio familiar a duras penas conquistado. Nada que desperte mágoas, levante lebres, quebre o que restou de mágica.

As mulheres agitadas no suprimento de uma fome que não há. Os homens esparramados em poltronas e piadas requentadas. Os idosos resmungando, rindo do que não ouvem e cochilando. Os jovens teclando mensagens no celular. As poucas crianças entretidas com jogos eletrônicos e com a contagem dos minutos que faltam para a meia-noite, quando serão distribuídos os presentes .

Num gesto de solidariedade à mulher que se esfalfa para trazer a segunda leva de guloseimas, estrelada por rabanadas, castanhas, panettones, tortas, nozes, avelãs e frutas suficientes para acabar com a fome na Etiópia, um dos homens se levanta. Sua indumentária, adequada ao calor de trinta e tantos graus, sublinha o absurdo do tradicional cardápio importado do inverno europeu. Veste bermuda, calça sandália de couro, quase inteiriça, com raras frestas a ventilar o peito do pé e uma generosa tira de sustentação sobre o calcanhar. Quer fazer bonito, marcar um ponto com a patroa, catando uns pratos usados com talheres em cima para levá-los à cozinha, onde o calor é dez vezes maior. Dentre os talheres, um garfo, até então despercebido. Quem presta atenção a um garfo em qualquer festa? Fala-se da faca que corta mais ou menos, da colher que, dependendo do tamanho, melhor atende ao volume de arroz ou de molho que se propõe a transportar. Mas o garfo, especialmente no Natal, onde luzinhas piscam na árvore vaidosa, travessas e baixelas arrebatam os olhos, e vermelhos, dourados e verdes competem por todos os lados, pobre garfo, ninguém o percebe. Injustiça, ingratidão, falta de caridade. Aquele garfo desprezado viajara a uma das bocas ali presentes mais de trinta vezes, tinha segurado os pedaços de carne para que a faca pudesse trabalhar, tinha transitado entre lábios, dentes e língua com a classe que dele se esperava, e trafegava agora todo babado, sobre um prato gosmento, a caminho da pia, com escala na máquina de lavar louça, de onde seria recolhido à gaveta dos talheres de festa, provavelmente até o próximo Natal. Era um garfo de festa, inoxidável, anatomicamente planejado, peso perfeito, curvas exatas, sendo tratado como utensílio vulgar. Sentindo-se condenado ao ostracismo e ofendido em sua dignidade, ele desliza até a borda do prato, vislumbra os pés de seu condutor lá embaixo e, consciente dos poucos passos que restam entre a sala e a cozinha, precipita-se com ânimo vingador num mergulho quase suicida. Pontaria perfeita. Encaixou um dente na única fresta da sandália, perfurando cirurgicamente o peito do pé esquerdo do canalha que o ignorava.

Ops! Uma pontada desagradável fez o homem perceber que algo atingira seu pé. Viu o garfo no chão. Olhou para o pé, notou uma gotinha de sangue, e comentou, com quem pudesse ouvir, a ocorrência do pequeno acidente. Envergonhado com sua falta de jeito, conferiu o que ainda se equilibrava sobre o prato e respirou aliviado ao constatar que nada além daquele garfo ridículo havia escapado de suas mãos. Ao retornar os olhos ao pé, a gota de sangue se transformara em filete. Pediu ajuda. Deu mais um passo, traçando um rastro vermelho sobre o piso de mármore impecável. Repetiu o pedido de ajuda já chegando à cozinha, onde as mulheres mal lhe deram ouvidos.

- Furei o pé. Tá sangrando!

Uma das mulheres correu com um guardanapo de papel para acudir o chão, antes que aquele sangue o manchasse para sempre. O ferido se apressou em descalçar a sandália, nova ainda, que já se empapava de sangue. A essa altura, pequenos esguichos denunciavam que uma artéria havia sido atingida, sentença proferida pelo médico homeopata, cuja visão do sangue alheio costumava produzir desmaios, e, sendo seu irmão o paciente em questão, aumentavam exponencialmente as chances de terem mais um marmanjo para acudir naquela noite. Desesperançadas com a salvação imediata do piso ante o repentino chafariz hematológico, as mulheres correram em busca da gaze que ninguém encontrava, do algodão quase inexistente numa caixa amassada e do esparadrapo amarelado de tão velho. Todos os participantes da festa se aglomeraram na cozinha. Alguém sugeriu um band-aid, provocando risos nervosos nos que imaginaram o pequeno curativo se afogando naquele simulacro de poço de petróleo. Um voluntário saiu da dispensa com um frasco que julgava ser de algum antisséptico, sem notar que se tratava de um descongestionante nasal. Uma toalha!, gritou uma voz não identificada. A dona da casa correu ao banheiro com o irmão médico, onde reviraram as gavetas decidindo se tal toalha seria nova demais, ou clara demais, e, na falta de uma toalha vermelha, acabaram agarrando uma branquinha mesmo. De volta ao local onde o ferido já sangrava e suava em bicas, o irmão médico, desviando o olhar e controlando o fôlego para não cair desmaiado, começou a fazer pressão no ferimento com a gaze finalmente encontrada. Parecia não funcionar. Sobre a gaze enrolaram a toalha branca, continuando a pressão sem a visão desagradável do que se passava naquele vazamento rebelde. Melhor levá-lo ao hospital, sugeriu o médico. O ferido olhou para o relógio. Quase onze da noite, ia estragar a festa de vez. Mas a autoridade do irmão médico era indiscutível. O irmão mais novo se ofereceu para pilotar o carro. Os três irmãos se puseram em marcha, dois andando e um saltitando até o elevador. A sobrinha mais nova gostou da novidade e queria ir junto, dizendo adorar hospital. Mãos providenciais a arrancaram do elevador.

Rápida operação de embarque na garagem do prédio, e puseram-se em marcha.

No caminho, pé para cima, polegar apertando a artéria. Quinze minutos de um trânsito pra lá de benevolente e chegaram à clínica, onde o plantão era um sossego só. Checado o plano de saúde e preenchida a papelada, acrescentou-se ao bolo de pano em torno do membro perfurado a meia que o irmão médico retirou do próprio pé.

À bordo de uma cadeira de rodas providenciada imediatamente pela recepção da clínica, ingressou o paciente na enfermaria, seguido pelos dois irmãos, ostentando um pé esquerdo digno de elefantíase.

Retiradas todas as camadas de tecido, o único sangue que restava era o ressecado em torno do pé. Do furo original nenhuma gota saía. O plantonista, com indisfarçável frustração, apenas disse que a pressão durante o deslocamento produzira o efeito desejado. A artéria parou de jorrar, o ferimento secou, e tudo o que restava a fazer era uma faxina no pé agora amarronzado de sangue seco.

Chegaram de volta antes da meia-noite. Contaram e recontaram o que aconteceu na clínica, riram da situação, fizeram as piadas possívels, recordaram as reações estapafúrdias no alvoroço da cozinha, comeram mais um muito, e redescobriram o sabor do convívio natalino.

à meia-noite, distribuíram-se os presentes, trocaram-se cartões e palavras de afeto. Às duas, começaram as despedidas. O aparelho de som tocava Noite Feliz. Todos pareciam cansados, mas, sob várias camadas de um tecido invisível, emocionalmente revigorados.

Misturado aos outros talheres na lavadoura de louça, um garfo orgulhoso sorria com seus quatro dentes arreganhados. Sua proeza seria lembrada por muitos anos como o ponto diferenciador daquele Natal.

domingo, 11 de dezembro de 2011

A dedicatória de Luiz Ruffato


Fui ao lançamento do livro.
Adoro o trabalho do Ruffato, que comecei a admirar pelo Inferno Provisório, antes mesmo de conhecer o premiado "Eles eram muitos cavalos".
Lá estava ele na mesinha da Argumento, esbanjando o estar de bem com a vida que sua mineirice, residente em São Paulo e acariocada pela opção de ser flamenguista, revela em sorrisos fartos, descontração e gosto pelo papo informal. Brindava com especial atenção cada integrante da fila de autógrafos. Puxava conversa, lembrava episódios, tirava fotos... altíssimo astral.
Chegada minha vez, não foi diferente. Falamos até do gol de falta do Ronaldinho Gaúcho por baixo da barreira no histórico jogo contra o Santos. E ao final das risadas e sacaneadas num vascaíno que também estava na fila, o mestre sapecou sua dedicatória no meu exemplar.
Saí da fila feliz e fui ler o que ele havia escrito. Era um texto de 5 linhas, nenhuma delas contendo uma palavra sequer que respeitasse os mais básicos critérios legibilidade. Não entendi lhufas, mas deu-me o que pensar. Imediatamente lembrei de uma senhora que pouco antes havia retornado para pedir-lhe que lesse o que escreveu. Decididamente, não era de visão o problema daquela senhora.
Pensei se não seria uma estratégia brilhante para escapar do suplício de criar dedicatórias nesse tipo de evento, cada um querendo um texto especial do autor que luta contra dores no punho e falta de ânimo pra bancar o repentista. Rabisca-se algo ininteligível, o destinatário imagina o que quiser e todos ficam felizes para sempre. Podia ser também um recurso estilístico, gerando certo mistério em torno de dedicatórias indecifráveis.
Seja lá o que for (talvez nada mais que uma vocação para a área de saúde que lhe tenha premiado com letra de médico), a dedicatória marcou. Quem sabe não é conceitual? Para um livro chamado "Domingos sem Deus", nada mais sensato do que escrever torto por linhas certas.
Esse Ruffato é gênio mesmo.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O que é fazer a coisa certa.

A questão do certo ou errado sempre aparece na vida da gente e, por mais que soe corriqueira, muitas vezes nos surpreende, incomoda, levanta dúvidas, sacode a consciência.
O filósofo Michael Sandel sabe mexer com esse assunto, apertando os botões perturbadores de nossa ordem interna com seu livro "Justiça. O que é fazer a coisa certa". E o faz através de perguntas bem colocadas, levantando hipóteses que se complicam gradativamente até que nos vejamos em encruzilhadas dramáticas, que se aplicam a situações paralelas mais comuns a partir do momento que desvendam os fundamentos de nossos critérios de justiça. Encruzilhadas que, acima de tudo, dão o que pensar. E como faz falta parar para pensar.
Escrevendo de um jeito informal, espelhado nas concorridíssimas aulas que ministra em Harvard, o professor Michael nos brinda com um senhor livro.
Em tempos carentes de ética como os nossos, é uma bênção ver tema tão relevante sendo tratado de forma tão competentemente comunicativa.